terça-feira, 27 de outubro de 2009

Sons políticos


Sei que muitos se incomodam com o fato de que os produtos artísticos podem veicular posicionamentos políticos, podem ser meio de transformar uma realidade. A mim, pelo contrário, sempre me encantou essa possibilidade. E sei também que, àqueles que se sentem incomodados, o engajamento alheio soa como simples forma de se destacar – é por isso que muita gente sempre questiona qualquer posicionamento político. Quer ver? Se você não come carne por uma questão de paladar – por não gostar do sabor da carne – ninguém vai te encher o saco; mas basta você fazer desse gesto uma posição política – por lutar por um tratamento ético dos animais – que a questão se torna polêmica e você passa a ser visto como o chatola quixotesco que quer mudar o mundo.

No fundo, creio que qualquer posicionamento político que se manifeste no dia a dia (seja a luta pelos direitos dos animais, o cuidado com o meio ambiente, a recusa dos preconceitos que estão arraigados por aí, etc.) acaba por jogar na nossa cara uma velha preguiça de engajamento, que sempre se esconde por trás da vontade - ou necessidade - de destituir de sentido todo o esforço alheio (aquela velha história de ‘pra que fazer algo se nada vai mudar?’).

Essa pequena reflexão sempre me vem à mente quando ao falar de qualquer música de protesto – de Violeta Parra a Matthew Herbert, de Mercedes Sosa a Fela Kuti – a única resposta que as pessoas têm é a de que tudo o que está por trás do protesto é a vontade de se destacar, de se promover, de fazer desse posicionamento uma forma inteligente de ganhar dinheiro na indústria fonográfica. Pior ainda é quando a discussão toma o rumo estético e os meus amigos de conversa começam a me persuadir de que estética e política não devem se confundir – porque "panfletagem" não é experiência estética. Essa discussão é tão recorrente quando manifesto minha admiração por artistas que fizeram de sua trajetória uma possibilidade de mudança... também me empolga a noção de "possibilidade". Devíamos acreditar mais nela.

E era nisso que eu estava pensado na semana passada (bem depois de uma conversinha boba sobre Matthew Herbert) quando deparei com uma comemoração chamada Fela Day – uma celebração do aniversário do multi-instrumentista nigeriano Fela Kuti. Não havia melhor oportunidade pra dividir com vocês não só música, mas também ideias.


Fela Kuti foi o inventor do chamado afrobeat, uma mistura de jazz com ritmos africanos que fez a cabeça de muita gente na década de 1970, a ponto de influenciar artistas como Roy Ayers (que, além de ter trabalhado com Fela, acabou lançando um álbum em 1981 chamado Africa, the Center of the world) e os Masters At Work (que o homenagearam numa faixa de 1999, posteriormente incluída no ótimo disco Our Time is Coming, em 2001). Aliás, assim como muita gente que eu conheço, foi com MAW e também com Gilles Peterson que me aproximei de Fela Kuti.

Filho de uma feminista e de um pastor protestante, no fim da década de 1950, Fela esteve na Inglaterra, onde começou a estudar música e formou sua primeira banda. Uma década depois, em 1969, foi se apresentar nos Estados Unidos. Imaginem chegar nos EUA pós-1968, com todo aquele clima de discussão das relações raciais? Pois Fela entrou em contato com o movimento black power – mais especificamente com o grupo dos Panteras Negras, experiência que foi por muitos considerada responsável por uma mudança na visão política do artista. Na volta, montou uma comuna e a declarou independente da Nigéria - aí começou uma longa relação entre música e política, que marcou toda sua obra.

Na década de 1970, seu país assim como o nosso sofria com uma ditadura militar. Fela começou a fazer de suas apresentações na sua boate, manifestações contra a política do presidente e por isso foi perseguido.

Em 1977, por exemplo, após o lançamento de Zombie, em que criticava as forças armadas da Nigéria, sua comuna foi invadida, ele foi preso e sua mãe, arremessada por uma janela (!), acabou morta. Fela respondeu a essa situação mandando o caixão da mãe ao quartel. Em 1979, com a possibilidade de abertura política, candidatou-se à presidência da Nigéria, mas sua candidatura foi recusada.


Apesar de todo contexto adverso, na década de 1980, Fela continuou fazendo da política o tema de sua música e posicionou-se a respeito não só da corrupção em seu país, mas também a respeito do apartheid e da política de Tatcher e Reagan. Manifestou ainda apreço pelo pan-africanismo - para ele, a união africana era vista como a forma de superar a condição do continente que sempre sofreu com a exploração das grandes nações europeias. Na década de 1990, sua produção não foi tão intensa e Fela começou a sofrer com os primeiros sinais da AIDS, doença que acabou por levá-lo à morte em 1997.

Fela se foi, mas sua vontade de transformar resiste através de sua música. E foi pensando nisso que selecionei algumas coisas para dividir com vocês.


Primeiro, tem a coletânea que o homenageou em 2002, feita pela Red Hot Organization – instituição que arrecada fundos para pesquisas a respeito do vírus da AIDS, Red Hot + Riot: The Music & Spirit of Fela Kuti. Esse tributo – recomendadíssimo! – contou com a participação de Mario Caldato, Bugz in the Attic, Nile Rodgers, Sade, D’Angelo e do filho mais velho de Fela, Femi Kuti.

Em seguida as faixas que escolhi. Cabe lembrar que estamos falando de uma música que não é exatamente pop. Trata-se de canções longas, espécie de jam sessions de vinte minutos. Além do mais, como a sonoridade jazzística se mistura com os ritmos afro, é óbvio que o yorubá e os dialetos africanos é que dominam aqui – aliás, esta é também uma postura política de Fela Kuti, que, ao privilegiar a mistura de termos do inglês com esses dialetos, favoreceu a apreciação de sua música por diferentes culturas no continente africano. “Open and close” (1972) e “Zombie” (1977) funcionam como boa introdução a essa sonoridade. “Upside down”, de 1976, com vocal de uma de suas vinte e tantas mulheres, Sandra Akanke Isidore, tornou-se um clássico. É ela que foi refeita pelos Masters at Work em 1999 ao lado de uma das vocalistas do Soul II Soul. Essa faixa também foi remixada por Roger Sanchez e saiu na coletânea Choice, organizada por ele. Apesar de eu adorar a original, os remixes são mais que recomendados!

Por fim, das músicas que selecionei, meu destaque vai pro encontro de Fela com o grande Roy Ayers, vibrafonista que circulou pelo jazz, soul, funk, disco e r&b, e que em 1980 juntou-se ao nigeriano para gravar “Music of Many Colors”. No lado A, "2000 Blacks got to be free" com vocal de Roy nos convida a pensar sobre a Africa, sobre a necessidade da união, sobre a união dos povos, família, prosperidade, direitos... – essa faixa, em 2006, foi editada e mixada por Louie Vega para a coletânea Africa Plays On. No lado B, temos Fela nos vocais – essa música acabou regravada e deu origem à faixa-título do álbum seguinte de Roy – Africa, Center of the World.

Engraçado como até hoje esse encontro não foi visto como um grande momento desses dois artistas. Pra muita gente, as duas canções que saíram daí são interessantes, mas não essenciais... A performance de Roy foi considerada pouco expressiva e a repetição dos instrumentos de sopro foi vista como maçante. Não concordo: o encontro da banda de Fela com o vocal e o vibrafone de Roy tornou-se um dos meus clássicos de todos os tempos porque não é todo dia que dois grandes artistas se reúnem e conseguem criar algo político e tão tocante. Prestemos atenção na letra e vamos então pensar em tudo que ele nos diz lá!

Beijos de Babooshka


Fela Kuti - Open and close (1972)

Fela Kuti - Zombie (1977)

Fela Kuti ft Roy Ayers - 2000 Blacks got to be free (1980)

Fela Kuti ft Roy Ayers - 2000 Blacks got to be free (Louie Vega EOL mix)

Fela Kuti ft Roy Ayers - Africa, center of the world (1980)

Fela Kuti ft Sandra Akanke Isidore - Upside down (1976)

Fela Kuti ft Sandra Akanke Isidore - Upside down (S-Man's Flipside edit)

Masters at Work ft Wunmie - MAW expensive (A tribute to Fela)

Red Hot + Riot: The Music & Spirit of Fela Kuti

Um comentário:

  1. Incrível! Tudo a ver com o momento que to vivendo!

    Aliás, sabia que a Chaka Khan também se envolveu com os Panteras Negras?

    Outra triste: ouvi falar que Roy Ayers tá bem acabado pelas drogas.

    Emocionante o texto. Não é toda hora que aparecem blogs como o seu, dear. Parabéns e obrigado por nos presentear com esse e todos os posts!

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